Em rara entrevista, Bob Dylan fala sobre rock, Sinatra, infância e a ex-mulher
28 de março de 2017
Reza uma velha lenda do rock’n’roll que era para Bob Dylan e George Harrison terem gravado um disco com Elvis Presley, mas o Rei acabou não dando as caras. Na versão de Dylan, porém, Presley “apareceu sim, nós é que não”.
Numa rara entrevista concedida ao escritor Bill Flanagan e publicada no site de Dylan na noite da última quarta-feira (22), Dylan foi mais generoso do que de costume em revelar os detalhes da sua vida pessoal e musical, de uma forma como não se via há anos. Talvez o mais chocante seja a sua admiração recém-descoberta pelo cancioneiro popular dos EUA.
Seus últimos dois álbuns, “Shadows in the Night” e “Fallen Angels” eram covers de canções tradicionais. Na próxima sexta (31), ele deverá lançar o seu 38º álbum de estúdio, “Triplicate”, um megadisco 3-em-1 de clássicos como “Stormy Weather”, “As Time Goes By” e “The Best is Yet to Come”.
“Essas canções”, diz ele, “são algumas das canções mais devastadoras já gravadas, e eu queria fazer jus a elas. Agora que eu já as vivi e vivi no meio delas, eu passei a entendê-las melhor. Elas te tiram desse mainstream massacrante onde você se vê preso entre diferenças que podem até soar de um jeito diferente, mas são essencialmente a mesma coisa. A música e as músicas modernas estão tão institucionalizadas que você nem percebe. Já essas são canções frias, que têm uma nitidez no olhar, e há um realismo direto nelas, uma fé na vida ordinária igual tinha no começo do rock’n’roll”.
Seguem aqui os trechos mais fascinantes, poéticos ou simplesmente engraçados da entrevista.
Sobre nostalgia
Para um artista que encontrava prazer em deixar seu público perplexo – mais famosamente quando fez a transição do acústico para a guitarra elétrica e para o estilo rock’n’roll no Newport Folk Festival de 1965 –, seria de se estranhar que Dylan venha se concentrando agora na música popular, até ele explicar a profundidade do amor que ele desenvolveu pelo gênero nos últimos anos.
Apesar de suas músicas cover recentes talvez parecerem meio “nostálgicas”, Dylan enxerga as canções como pertencendo ao “aqui e agora”. “Não é uma viagem pela memória ou uma saudade dos bons tempos de antigamente ou lembranças queridas daquilo que não existe mais”, diz ele.
Ainda assim, num trecho bastante lírico da entrevista, Dylan refletiu sobre a passagem do tempo. Segundo ele, não há motivo para se olhar para trás com tristeza.
“De 1970 até hoje passaram-se uns 50 anos, mas parece mais 50 milhões. Tem uma muralha de tempo que separa o velho do novo, e muita coisa pode se perder nesse tipo de distância. Indústrias inteiras desaparecem, estilos de vida mudam, corporações matam cidades, novas leis substituem as antigas, interesses coletivos triunfam sobre os individuais, os pobres em si se transformaram num commodity. As influências musicais também – elas acabam engolidas, absorvidas pelas coisas novas, ou então caem no esquecimento.
“Mas eu não acho que seja motivo para choramingar ou para achar que está tudo além do teu alcance – ainda dá para você achar o que quiser procurar, se seguir o caminho de volta para o passado. As coisas estão lá exatamente onde você as deixou – tudo é possível. O problema é que não dá para trazer nada de volta com você, você precisa ficar por lá mesmo. Acho que é isso o quê da nostalgia”.
Sobre a sua infância em Minnesota
Deixando claro que ele cresceu na região norte do estado – lá “tem a sua própria linha Mason Dixon”, diz ele – Dylan se referia ao clima “extremo”, “congelado no inverno, cheio de mosquito no verão, não tinha ar condicionado quando eu era criança, calefação no inverno, mas você precisava usar um monte de roupa quando saía de casa”. Mas ele encontrou forças nos elementos.
“Teu sangue engrossa. É a terra dos 1000 lagos – muita caça e pesca. Território indígena, Ojibew, Chippewa, Lakota, as bétulas, os garimpos, os ursos e lobos – o ar é cru… As coisas são mais duras no norte. É um ambiente hostil – as pessoas têm vida simples, mas é assim também nas outras partes do país”. Apesar disso, no entanto, ele diz não se sentir necessariamente especial por sua criação. Após viajar o mundo, ele aprendeu que “as pessoas são meio que a mesma coisa aonde quer que você vá”.
Sobre Frank Sinatra
Os últimos dois discos de Dylan estavam recheados de covers de canções tradicionais que foram popularizadas por Frank Sinatra, a ponto de muitos terem acreditado que esses álbuns seriam tributos ao velho Blue Eyes. Sinatra, é claro, não chegou a viver para escutá-los. Mas Dylan partilha sim de uma relação com o cantor. Reza outra lenda do rock’n’roll que Bruce Springsteen e Dylan haviam sido convidados para um jantar na casa de Sinatra. Como eles descobriram depois, ele era fã deles em segredo.
“Acho que ele conhecia ‘The Times They Are a-Changin’ e ‘Blowin’ in the Wind’. Eu sei que ele gostava de ‘Forever Young’, isso ele me disse. Ele era engraçado, estávamos no seu pátio de noite e ele chega e me diz, ‘Você e eu, colega, a gente tem olhos azuis, somos de lá de cima’ e ele apontou para as estrelas. ‘Esses outros vagabundos são daqui debaixo’. Eu lembro de ter pensado que ele talvez tivesse razão”.
Dylan se apresentou em tributos a Sinatra para a televisão. Todos os outros artistas se apresentaram com versões de Sinatra, mas não Dylan. Dylan tocou uma música de composição própria, “Restless Farewell”.
“O próprio Frank me pediu que eu fizesse isso”, disse Dylan. “Um dos produtores botou para tocar para ele e mostrou as letras”.
Sobre a voz de Joan Baez
É quase certo que Baez serviu como musa para Dylan, e os dois tiveram o tipo de caso amoroso de que os tabloides como o Daily Mail ainda falam. “Eu me sinto bem mal com isso”, Dylan afirmou certa vez, segundo o Toronto Star. “Eu lamentei muito ver o fim do nosso relacionamento”. Parte da sua atração por ela, parece, era a sua voz. Como ele explicou na entrevista: “Ela era outra coisa, demais quase. Sua voz era como a de uma sereia de alguma ilha grega. O mero som já te deixava enfeitiçado. Ela era uma feiticeira; Você precisava se amarrar no mastro do navio que nem o Odisseu e tapar os ouvidos para não ouvi-la. Ela faria você esquecer quem você era”.
Sobre o seu cabelo
O cabelo de Dylan era uma parte tão integral da sua imagem, que Milton Glaser criou, famosamente, um pôster no qual ele acrescentou umas curvas coloridas às madeixas do cantor. Flanagan perguntou aquilo que todos nós já nos perguntamos: será que Dylan conseguiria alisar o cabelo?
“Conseguir eu conseguiria, mas eu nunca quis. Eu tentava parecer o Little Richard, digo, a minha versão do Little Richard. Eu queria um cabelão louco, queria ser reconhecido”.
Sobre ser o “bobo da corte” na canção “American Pie”
O elenco de personagens em “American Pie”, de Don McClean, inclui figuras como o rei, a rainha e o bobo da corte. Durante anos, muitos acreditavam que o bobo dos versos se referia a Bob Dylan.
Dylan parece discordar.
“O bobo? Claro, foi o bobo quem compôs ‘Masters of War’, ‘A Hard Rain’s a-Gonna Fall’, ‘It’s Alright, Ma’ – belo bobo, esse. Eu prefiro acreditar que ele está falando de outra pessoa. Perguntem para ele”.
E, por fim, sobre o rock’n’roll
Dylan ostensivelmente começou sua carreira como um músico de folk, e seu salto completo para o mundo do rock’n’roll ainda é discutido até hoje. Apesar de ele dizer que escutava Glenn Miller antes de ouvir Elvis Presley, o rock’n’roll o atingiu como uma bomba. Não só era um estilo musical explosivo, como ainda “botava abaixo as barreiras que a raça e a religião, as ideologias, construíram”. “O rock’n’roll era uma arma cromada e perigosa, que explodiu como a velocidade da luz e refletia a época, especialmente a presença da bomba atômica inventada vários anos antes. Naqueles anos, as pessoas tinham medo do fim dos tempos. O grande duelo entre o capitalismo e o comunismo estava no horizonte… Vivíamos sob uma nuvem de morte; o ar era radioativo. Não havia amanhã, qualquer dia podia acabar tudo, a vida não valia muito. Esse era o sentimento da época, e eu não estou exagerando”.
Apesar de todo esse medo, no entanto, diz Dylan, “o rock’n’roll deixava você insensível ao medo”.